terça-feira, setembro 19, 2006

Investigações no Santuário de Endovélico - ano de 2002 - 1ªParte

O sítio de S. Miguel da Mota, Terena, está de há longa data associado a Endovélico, uma divindade indígena cultuada sob o domínio romano, admitindo-se que ali se localizaria o seu santuário. O abundante acervo epigráfico e escultórico aí recolhido por Leite de Vasconcellos, em 1890, tem dado origem a diversos textos. Contudo, nunca se realizaram no local intervenções, que permitissem contextualizar o culto. Os signatários iniciaram, em 2002, um projecto de investigação que visa responder a esta interrogação.

Procurou-se, neste primeiro ano de trabalho, realizar as seguintes acções: levantamento topográfico da zona, prospecção sistemática da área e sondagens no local onde se ergueu a ermida de S. Miguel da Mota, que tinha reaproveitado inúmeros elementos do antigo santuário.As prospecções permitiram identificar vários elementos arquitectónicos indicadores de antigas construções que usaram silharia de granito e elementos de mármore, ambos geologicamente estranhos ao local, sobretudo reutilizados nas construções recentes que ali se encontram, bem como uma área de particular concentração de vestígios de época romana, a encosta Este do serro onde se erguia a ermida. Uma recolha sistemática de materiais permitiu concluir que não subsistem vestígios de ocupações pré-romanas e que a utilização de época romana parece circunscrever-se ao período compreendido entre o século I e os inícios do III d.C.

As sondagens realizadas na área da ermida revelaram que a intervenção de Vasconcellos em 1890 tinha sido de facto profunda, afectando praticamente toda a sua estrutura, até aos alicerces. Foi possível esclarecer que não existe qualquer templo romano sob esta construção, embora se tenham encontrado indícios aparentemente anteriores à fase moderna da ermida, particularmente sepulturas de inumação, estruturadas com lajes de xisto e orientadas E-W. Fora de contexto, foram recolhidos materiais de fase tardo-romana, duas moedas do século IV, um fundo de ânfora lusitana tardia, um fragmento de sigillata clara D e uma lucerna Atlante X. Estes materiais de cronologia avançada contrastam com os recolhidos nas prospecções da encosta nascente.

No decurso das sondagens foi possível recolher um notável e variado conjunto escultórico, que se encontrava sepultado sob as estruturas da ermida, bem como três novas aras consagradas a Endovélico.
Finalmente, procedemos a prospecções geofísicas na encosta nascente que revelaram um conjunto de estruturas soterradas que parece indicar a existência de um “santuário de terraços”.
Assim, o santuário de Endovélico terá sido uma construção monumental de plano clássico, edificada em época romana, que será investigado em futuras campanhas.


Introdução


O sítio de S. Miguel da Mota, concelho de Alandroal, emblematicamente associado ao santuário da divindade indígena Endovélico, cultuada em época romana, está classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto 67/97, de 31 de Dezembro (Diário da República, n.º 301). Localiza-se na parte mais elevada de uma longa crista rochosa, a noroeste da vila de Terena, no concelho de Alandroal, distrito de Évora (C.M.P. 1: 25 000, folha 451 - Coordenadas de um ponto central : Lat: 38º 38’ 37” e Long.: 7º 26’ 30”).

Apesar das múltiplas páginas que, desde os fins do século XIX, para não recuarmos mais, têm sido consagradas ao local e ao abundante espólio recolhido por José Leite de Vasconcellos, falta ainda uma efectiva contextualização do culto. Isto é, praticamente toda a informação que tem sido mobilizada é a que advém da leitura do significativo lote de epígrafes e da observação e interpretação dos elementos escultóricos, sendo totalmente ignorada a forma e implantação do santuário propriamente dito, bem como as condições concretas em que se dispunham os numerosos ex-votos ali existentes.

Esta carência foi, uma vez mais, sublinhada pela importante exposição promovida pelo Museu Nacional de Arqueologia que, realizando o ponto da situação sobre “as religiões da Lusitânia”, com particular relevo para Endovélico, cuja hipotética face (LIMC) constitui o ex-libris do evento (Ribeiro, 2002). A consciência havida de que faltava esse importante elemento contextual fez nascer o projecto arqueológico de S. Miguel da Mota.
O projecto resulta do esforço conjunto da Unidade de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, representada por Amílcar Guerra e Carlos Fabião, e da Delegação de Madrid do Instituto Arqueológico Alemão, representada por Thomas Schattner, que conjuntamente o dirigem. A associação de ambas entidades foi considerada a melhor forma de reunir os meios necessários e as competências específicas para o bom desenvolvimento do mesmo. O facto de praticamente se não ter trabalhado no local desde os princípios do século XX, quando José Leite de Vasconcellos ali fez as últimas intervenções, na sequência do desmantelamento das ruínas da ermida de S. Miguel, que empreendeu em 1890, colocava diversas questões práticas que se afigurava importante esclarecer previamente. Por esta razão, em lugar de avançarmos imediatamente com um programa de intervenção plurianual, propusemos ao IPA a realização de um conjunto de intervenções preliminares, que poderiam orientar o desenho de um programa de maior fôlego. Para além das referências do fundador do Museu Etnológico, dispúnhamos, ainda, das informações publicadas, resultantes das recentes prospecções ali efectuadas por Manuel Calado (1993, p. 61).

No quadro dos objectivos genéricos, de procurar orientações para uma efectiva contextualização do culto de Endovélico, desenharam-se várias etapas de intervenção, devidamente faseadas.
Em primeiro lugar, visar a delimitação da área de interesse arqueológico para, deste modo, orientar as acções de intervenção no subsolo. Esta tarefa foi considerada prévia a todas as outras, pelo que nos ocupou uma parte da presente campanha. Basicamente, o que se pretendia era determinar a área (ou áreas) de culto, ou com ele associada(s), consubstanciada na identificação de elementos arqueológicos dispersos à superfície; definir, tanto quanto possível, o seu âmbito cronológico, com base em informação diferente da proporcionada pelas características intrínsecas das epígrafes ou da estatuária; averiguar se existe, entre os materiais arqueológicos identificados, algum elemento que permita esclarecer a diacronia das práticas cultuais e, sobretudo se efectivamente há elementos que permitam supor que um primitivo local de culto, pré-romano, existiu no cerro de S. Miguel da Mota.

Finalmente, como não poderia deixar de ser, em face das ideias dominantes sobre o sítio, determinar se a ermida se sobrepunha a alguma estrutura de carácter religioso mais antiga: ou ao templo romano, como sugeria Gabriel Pereira (Pereira, 1889, p. 145-146), ou a uma estrutura mais recente, que marcasse o processo de cristianização do local de culto, que a presença de alguns elementos iconográficos parece sugerir (Correia, 1928, p. 377; Almeida, 1962, p. 119-121; Real, 1995, p. 45).
Como estamos a trabalhar num local onde existiram já várias intervenções, a saber, demolição da ermida para recuperar epígrafes e elementos escultóricos, empreendida por José Leite de Vasconcellos, em 1890 (Vasconcellos, [1890] 1938, p. 197-206; 1905, p. 111 e ss. e 1916, p. 153-154 e 174-175), novas pesquisas empreendidas pelo mesmo em 1904 e 1907 (Vasconcellos, 1913, p. 196, 1915, p. 326-329, 1916, p. 153-154 e 174-175), entre outras menores, cujos contornos não foram esclarecidos nas sucintas páginas que sobre elas se publicaram, impunha-se igualmente uma reavaliação de toda a informação já recolhida, com especial atenção à depositada no Museu Nacional de Arqueologia.

Este processo de reavaliação dos espólios recolhidos nos trabalhos em S. Miguel da Mota terá em consideração também a escultura e a epigrafia, mas procurará tratar sobretudo o restante espólio arqueológico de lá trazido, supõe-se que para o Museu Nacional de Arqueologia, mas nunca efectivamente publicado -Vasconcellos falou de “(...) algumas moedas, e de uns fragmentos de vidro e de barro (...)” (Vasconcellos, [1890] 1938, p. 201) ou de “(...) objectos de barro e de vidro e moedas romanas do sec. IV (...)” (Vasconcellos, 1905,p. 122) —, bem como da documentação manuscrita relacionada com estes trabalhos, que se conservará (supomos) nos espólios legados pelo Autor a diversas instituições públicas, Museu Nacional de Arqueologia, Biblioteca Nacional e Faculdade de Letras de Lisboa, sendo o núcleo do Museu aquele que mais possibilidades tem de albergar essa documentação. De facto, por diversas vezes foi prometida a publicação de “ (...) uma monographia circunstanciada sobre o assunto” (Vasconcellos, 1905, p. 112) e de um estudo detalhado sobre as intervenções de 1907 (Vasconcellos, 1913, p. 196), que nunca se concretizaram. Assinale-se que o próprio Leite de Vasconcellos escreveu que “As minhas pastas e gavetas abundam de apontamentos e notas que respeitam à historia do Alandroal (...)” (Vasconcellos, 1916, p. 154), por tudo isto, é de supor que a pesquisa documental venha a ser frutuosa.

Em traços gerais, é este o programa do projecto de investigação de S. Miguel da Mota. Para o primeiro ano, que considerámos de exploração preliminar, tínhamos projectado iniciar as pesquisas no Museu Nacional de Arqueologia, em busca dos espólios nunca publicados e dos documentos constantes do legado do seu fundador, e, no terreno, desenvolver trabalhos que visavam três objectivos distintos:
• Levantamento topográfico do serro de S. Miguel da Mota, tarefa preliminar a todas as acções a desenvolver no terreno;
• Prospecção sistemática da área, com vista à determinação das zonas de dispersão de indícios de antigas ocupações, com especial incidência nas encostas da crista sobre a qual se ergueu a ermida de S. Miguel;
• Realização de breves sondagens na plataforma onde esta teria existido (nada era perceptível no terreno), visando esclarecer se existiria, de facto, a sobreposição física da mesma relativamente ao templo romano ou a outra qualquer estrutura cultual cristã, mais antiga, como se tem pretendido, e determinar a natureza das intervenções ali feitas por Leite de Vasconcellos.

A equipa de trabalho foi constituída por Amílcar Guerra, Thomas Schattner e Carlos Fabião que são, igualmente, os promotores do projecto de investigação. O arqueólogo Rui Almeida assegurou as tarefas de coordenação de campo, auxiliado nas últimas semanas de trabalho por Teresa Laço. Rainer Komp ocupou-se do levantamento topográfico e Monica Perkovic da fotografia, excepto nas últimas duas semanas. Participaram igualmente nos trabalhos Joana Tsometsidou e Astrid Puckett estudantes de Arqueologia Clássica da Universidade de Giessen e três trabalhadores locais contratados.

O Instituto Português de Arqueologia, a Delegação de Madrid do Instituto Arqueológico Alemão e a Câmara Municipal do Alandroal forneceram os meios necessários à realização dos trabalhos. Estamos gratos, igualmente, à Junta de Freguesia de Terena, que nos proporcionou um espaço de trabalho para limpeza e tratamento de materiais, bem como à Srª D. Genoveva Belo, proprietária do terreno, por amavelmente nos ter autorizado a proceder às prospecções e sondagens.
Os trabalhos de campo, levantamento topográfico, prospecções e escavações decorreram de 30 de Setembro a 1 de Novembro de 2002 e as propecções geofísicas de 15 a 19 de Fevereiro de 2003.

Mesmo antes da realização dos trabalhos assumimos a incumbência de proceder com a maior celeridade possível à divulgação preliminar dos seus resultados. Estávamos conscientes da expectativa criada por esta primeira intervenção e, por isso mesmo, sentiamo-nos na obrigação de o fazer. A qualidade da informação obtida só veio reforçar esta ideia. O que se segue constitui, pois, uma relação preliminar de dados, apresentada mesmo antes da maior parte dos materiais ter sido submetida às necessárias limpezas. Assim, deverá ser entendido mais como um relatório de progresso do projecto de investigação, do que propriamente um relatório final.

in "Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol. 6, nº 2/2003"

9 Comentários:

Às 20 setembro, 2006 09:51 , Anonymous Anónimo disse...

Como Terenense de alma e coração, fico muito contente com este texto aqui publicado. Afinal são estas pequenas grandes causas que dignificam a nossa terra.
Um grande abraço...

 
Às 21 setembro, 2006 00:27 , Anonymous Anónimo disse...

A freguesia de Terena é riquíssima em termos de história antiga, e o Outeiro de São Miguel da Mota tem sido o lugar que mais tem interessado historiadores e arqueólogos, isto devido à grandeza do Templo romano que ali existiu. Porém a política seguida a começar logo por Leite de Vasconcelos, no meu entender não foi a que melhor serviu o interesse da nossa freguesia. Ao retirar do seu lugar grande parte do espólio histórico que ali se encontrava, ele empobreceu-nos, continuando a profanação do lugar como já vinha acontecendo há séculos, embora por outros motivos. O que ele devia ter feito era mover a sua influência no sentido de convencer quem de direito, a preservar e restaurar tanto quanto possível aquele lugar com tudo quanto lá existia. Essa sim teria sido para nós a conduta mais apropriada e responsável. Ao invés doutros locais que existem no nosso país, nós hoje não temos lá nada para mostrar... Além de vários buracos, produto de escavações arqueológicas.

 
Às 21 setembro, 2006 10:23 , Blogger kapa disse...

Caro Major

Não poderia estar mais de acordo consigo, mas neste momento já pouco se pode fazer. Resta-nos a divulgação e rever alguns desses achados espalhados por diversos Museus, infelizmente todos longe de Terena.

Kapa

 
Às 21 setembro, 2006 14:17 , Blogger Dad disse...

Que interessante o que descreves.

Gostei de conhecer o teu blog.

Passarei por aqui...

Abração,

 
Às 22 setembro, 2006 01:16 , Blogger margusta disse...

Querido Kapa,
...hoje passo para te dar só um beijinho, amanhã passo para te ler com mais atenção...

 
Às 22 setembro, 2006 23:50 , Blogger margusta disse...

Querido Kapa,
...e aqui estou eu de novo.
Cada vez a minha curiosidade em visitar Terena e arredores se torna maior...
Pelo que acabo de ler essa zona encerra ainda muitos mistérios e segredos...por isso me fascina arqueologia, essa capacidade de muito pacientemente reunir esses "pedacinhos " do passado e com eles dar-nos a conhecer a história.

Santa ignorancia a minha :))), pois nunca tinha ouvido falar dessa Divindade " Endovélico"!...

Beijinhos Kapa e um bom fim de semana.

Obrigada por nos dares a conhecer estes "pedaços" da História.

 
Às 23 setembro, 2006 20:13 , Blogger António Caeiro disse...

Sempre interessantas as visitas a Terena. Abraço.

 
Às 25 setembro, 2006 12:50 , Anonymous Anónimo disse...

Terena e a região envolvente possuem sinais visíveis de grande importância histórica e patrimonial. Quem por ali passa facilmente e apercebe disso! A exploração destes vestigios do passado, nem sempre se traduz em benefício das localidades onde os mesmos se situam. Os achados são, regra geral, retirados para outros meios tidos como mais importantes, despresando a vontade das populações e o seu direito ao enriquecimento do seu património local. Aconteceu também por estes lados quando da exploração (interrompida) de um Castro, cujo espolio aliencontrado nem todo ficou na Aldeia. Bom trabalho e continua a divulgar Terena e toda essa bonita região do País. Abraç.

 
Às 26 setembro, 2006 02:20 , Anonymous Anónimo disse...

Excelente artigo !
Devemos apreciar os nossos cantinhos de Portugal... Recordo-me de ter passado por Terena numa viagem que fiz pelo Alentejo.
Terena, por vezes também conhecida como São Pedro de Terena, poderá vir a ter um espaço no meu blog... será o meu contributo a uma zona com muita história.
Uma boa semana.
Abraço

 

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